quarta-feira, 16 de abril de 2008

A racionalidade animal

Nunca pensei que o perturbativo poodle, hóspede digamos, pouco sociável de minha nobre caverna, pudesse despertar alguma reflexão proveitosa, e fazer-me escrever sobre isto. A idéia que habita o senso comum nos diz que os pobres animaizinhos são irracionais, dando-nos o prestigiado primeiro lugar, e único por sinal, na escala de racionalidade, a capacidade de fazer abstrações, deduções, enfim, raciocinar. Mas uma descompromissada análise desse axioma pode nos trazer algumas dúvidas, e uma certa desconfiança.

Como não podemos citar todas as definições do conceito de racionalidade, bem como o motivo do porquê os animais não a possuem, fiquemos com Hume, que se enquadra relativamente à idéia geral do termo:

"É impossível que a inferência do animal possa basear-se em algum processo de argumentação ou raciocínio, pelo qual ele conclua que eventos semelhantes devem seguir-se a objectos semelhantes e que o curso da natureza será sempre regular nas suas operações."

Ao me deparar com este parágrafo, dei de cara com o dito cujo, o poodle batizado, ou melhor, batizada de Kim, que ao me ver na sala, dispara em direção ao quintal. Eu, possuidor da magnífica e exclusiva capacidade de raciocínio, deduzo que ela deixou um presente no chão do apartamento, daqueles com odor bem desagradável, e que pela graça de uma divindade qualquer, é limpada pela mulher da casa. Como eu já tinha observado a cadela nessa fuga alucinante, logo após realizar suas necessidades no chão da sala, concluí que a semelhante corrida deve ter sua origem em uma semelhante necessidade abandonada no assoalho. Já que, nas palavras de Hume, "eventos semelhantes devem seguir-se a objectos semelhantes e que o curso da natureza será sempre regular nas suas operações." Sendo assim a natureza foi como sempre, mais regular e constante que o gotejar de uma torneira quebrada.

Peguemos agora Kim, nossa ilustre protagonista, e a visemos como sujeito desse gracioso evento. Certa vez, a apetitosa (na opinião de alguns japoneses) cadelinha Kim, estando muito apertada, e tendo uma particular preferência pelo chão da sala à lage do pátio, alcançou o clímax de seu processo digestivo, culminando no que eu chamo formalmente de uma grande bosta preta. O macho supremo e dominante do território, que por sinal era eu mesmo, chegou nos últimos suspiros anaiscadélicos, e observando aquela marcação não autorizada de seu terreno, disparou uma das havaianas tamanho 45 direto na bunda da desafiante cadelinha, o que por sua vez ocasionou uma fuga desesperada daquele território já conquistado.

Passado esse dia e mais alguns, aquele animal dominante que aqui chamo de "eu", chega em casa do serviço cansado, e dá de cara com a cadelinha Kim, que tem suas patas traseiras levemente arqueadas, e se prepara para mais uma tentativa de marcação do território. Obviamente nesse momento eu bato a porta e digo: Ahaam! - mostrando toda aquela extensão da já conhecida havaianas 45, e fazendo o animal desafiante sair em disparada, ainda mais desesperada que da primeira vez, quando foi acometida pela fúria do seu dono e carrasco. E eis que me perguntava se a cadelinha, tendo me observado na porta com o chinelo na mão, deduziu que àquilo se seguiria uma chinelada, e disso, muita dor. Na cabeça da infeliz, digo, da cadelinha Kim, deve ter sido impresso, com a ajuda de uma pequena dose de dor, a noção de que suas necessidades, quando feitas na sala e vistas por aquele bípede enorme, ocasionam uma dolorosa chinelada na bunda, que pode ser evitada por uma ágil corrida até seu lugar de origem, à saber, os fundos. Ora, a necessidade dessa corrida, dessa fuga repentina, deve-se à dedução, por parte da cadela, "que eventos semelhantes - (cagar na sala) - devem seguir-se a objectos semelhantes - (chinelada na bunda) - e que o curso da natureza será sempre regular nas suas operações." - Não fosse justamente esse processo racional, esse "esperar regularidade da natureza", não haveria necessidade da fuga, pois não haveria a conclusão, por parte da cadela, que fazer suas necessidades no assoalho da sala, necessariamente se seguiria à chinelada do macho dominante, em outras palavras, que a natureza seja regular em suas operações.

Logicamente os animais não humanos possuem uma certa limitação desse raciocínio, e uma equação de segundo grau não resolvida por uma macaca, poderia ainda levantar a suspeita de que são irracionais, e que somos os únicos privilegiados com uma ferramenta tão comum à natureza animal. Além do que, diriam alguns, temos a dádiva da linguagem, que nunca poderia ser utilizada por um ser tão primata quanto um macaco, ou um poodle. Mas à essa argumentação, é bom lembrar alguns experimentos científicos, como o de Roger Fouts, descrito no livro "O parente mais próximo", onde a macaca Washoe aprende satisfatoriamente a linguagem dos sinais para surdo-mudos:

"Durante toda sua vida, Washoe dominaria mais de uma centena de signos com uma sintaxe bastante bem elaborada, sendo capaz de criar novos significados para as palavras, assim como produzir variações pessoais do modo de representar determinadas idéias." - Scielo

Isso tudo é instinto, diriam alguns, os animais não "sabem que sabem", fazem por fazer, ou antes, porque as circunstâncias lhes obrigam à agir de determinada maneira. Então continuemos com nossa corroboração científica, e vejamos a conclusão de uma pesquisa feita recentemente por Allison Foote e Jonathon Crystal, publicada no periódico Current Biology:

"ratos são capazes de metacognição - em outras palavras, eles são capazes de saber se sabem de alguma coisa. Essa capacidade, que também pode ser descrita como a habilidade de avaliar ou refletir sobre o estado da própria mente, antes só havia sido reconhecida em seres humanos e outros primatas." - Tecnocientista

Mesmo os neurônios, que podemos nos gabar de possuir aos montes, são encontrados também nos golfinhos, em uma quantidade 3 vezes maior do que em humanos, sem contar que os danados inclusive se conhecem pelo nome. Conclui-se daí que não pode existir sequer uma demarcação de inteligências, já que não há menos ou mais inteligentes, simplesmente diferentes. Nós desenvolvemos determinados raciocínios e processos necessários à nossa espécie e ao nosso ambiente, e o mesmo se dá com todos os animais. Muito provavelmente grande parte deles possuí operações de raciocínio bem mais complexas do que nós, e nem por isso deixam de ser taxados irracionais.

E acaso não podem-se levantar outras mil e uma questões que certificam essa distância entre o "ser humano" e o animal? Algo deve nos diferenciar desses imbecis que mijam e cagam no chão da sala, e o que é pior, não se limpam depois disso! E assim caminha a humanidade, fabricando um gênero humano, raças humanas, leis divinas e costumes morais, tudo em prol da superioridade, ou melhor, de afirmar-nos superiores, melhores, únicos, e o resto é o resto. São todos irracionais. Será mesmo?

O problema são as implicações que essa distinção abriga. Seria muito mais complicado do ponto de vista ético realizar experiências em animais sencientes e inteligentes, sem contar que até a coleira para cães assume feições maquiavélicas, se vistas nesse contexto. Nada pior do que a mudança de hábito, de conceitos e costumes para a pobre mente animal-humana, que estremece ao menor sinal de divergência das suas convicções.

Ao menos à qualquer momento, podemos mostrar toda a nossa superioridade aos infelizes bichanos, mesmo que não haja uma comunicação interespécies que nos possibilite isso, nada que a linguagem do chinelo não faça inteligível à esses racionais, ou quase, familiares nossos.

Mais aqui, aqui, aqui e aqui.

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