terça-feira, 8 de abril de 2008

A conveniente valoração moral

De onde tiramos os conceitos de bem e mau, de bom e ruim, que usamos de instrumento para valoração dos atos nossos e dos outros? Em "Genealogia da moral", Nietzsche contrapõe as idéias de Paul Rée, psicólogo inglês que vê a origem da moralidade nas ações egoístas e não egoístas, que se fixam na idéia de bom e ruim.

No intitulado "A origem das impressões morais", o Dr. Paul Rée expõe a teoria de que nossa moral é valorada por aqueles que foram afetados pela ação, aos quais a ação foi útil, de acordo com sua intenção egoísta ou não egoísta. Ações egoístas, necessariamente seriam classificadas como más, por aqueles atingidos, e ações desprovidas de egoísmo, tal como compaixão, caridade, sacrifício ou humildade, julgadas como boas, assim como seus agentes, julgados bons. E assim, a sociedade tem seus valores morais fixados por terceiros, o qual são afetados pelas ações à serem valoradas. Depois de algum tempo de associação com os termos bom e ruim, a moral passaria a ser "sentida", como um "valor em sí". Nas palavras de Paul Rée:

"as ações não egoístas foram louvadas e consideradas boas por aqueles aos quais eram feitas, aqueles aos quais eram úteis; mais tarde foi esquecida essa origem do louvor, e as ações não egoístas, pelo simples
fato de terem sido costumeiramente tidas como boas, foram também sentidas como boas - como se em si fossem algo bom."


Em contraposição a esta tese, Nietzsche diz que a moral tem sua origem na nobreza de espírito, nos superiores em posição e pensamento que valoram a sí mesmos como bons, e ao extremo oposto, o comum, o baixo, o vulgar, como ruim. Esse sentimento de "superioridade", essa noção da distância entre o privilegiado e o vulgar, é que dariam, segundo o filósofo, os direitos de valoração e nomeação do que seria bom e ruim, para o grupo todo.

"Desse pathos da distância é que eles tomaram para si o direito de criar valores, cunhar nomes para os valores: que lhes importava a utilidade!"

Segundo Nietzsche, é somente com o declínio dos valores aristocráticos, com a "moral de rebanho", que o conceito de egoísta e não egoísta se estabelesce como critério de valoração. A etimologia das palavras bom e ruim, é que dão sustentação a hipótese:

"O exemplo mais eloqüente (...) é o próprio termo alemão schlecht [ruim], o qual é idêntico a schlicht [simples] - confira-se schlechtweg,
schlechterdings [ambos "simplesmente"]. (...) έσθλς [bom, nobre], significa, segundo sua raiz, alguém que é, (...) verdadeiro; depois, numa mudança subjetiva, significa o verdadeiro enquanto veraz: nesta fase da transformação conceitual ela se torna lema e distintivo da nobreza, e assume inteiramente o sentido de "nobre".


Mas há um problema nessa tese. Como ficariam as nações essencialmente pobres, ou, tal como ocorre hoje, a valoração não ocorra por uma estirpe elevada, mas pela generalidade do grupo? Poderia-se julgar as mesmas ações que antes eram nobres, boas, como egoístas, e agora, ruins. Para Nietzsche, isso representa uma decadência, uma degradação do que a moral significava em sua origem. Mas é preciso ultrapassar Nietzsche. Se a moral se estabelesce segundo a vontade daqueles que a valoram, não é nada mais do que os conceitos de quem julga postos como referência para essa valoração. Sendo assim, é tão particular e variável quanto a individualidade das pessoas. E de fato, tomando como exemplo a frase "Um tempo bom", para um agricultor poderia ser de grandes chuvas, mas para um veranista seria de muito calor. Isso não faz do veranista ou do agricultor mais certos ou errados, nem de Nietzsche ou de Paul Rée mais ou menos prováveis, apenas divergentes. Palavras são palavras, e podem representar para um, algo diametralmente oposto ao que representa para outro.

"O latim malus (ao qual relaciono μέλας [negro]) poderia caracterizar
o homem comum como homem de pele escura, sobretudo como de cabelos negros ("hic niger est-"),4 como habitante pré-aria no do território da Itália, que através da cor se distinguia claramente da raça loura, ariana, dos conquistadores tornados senhores;"


Mas Nietzsche não pensa sobre a África, que dificilmente denominaria ruim, ou mal, algo que fosse completamente natural, quase absoluto em seu meio. Daremos um desconto já que a arquelogia não mostrava ainda a origem do homem naquele continente, e Nietzsche poderia pensar que seriam valores já incrustados pela moral já degenerada. Também a genética não tinha dado seus ares e mostrado "A inexistência das raças humanas", e que não há superioridade alguma nesse sentido.

Se nem a utilidade, nem valores egoístas e não egoístas, tampouco a nobreza, a superioridade física e intelectual, possuem autoridade absoluta na valoração dos costumes e atos, o que nos impulsa a valorar os atos de uma pessoa, e os nossos mesmos? Não é a conveniência pura, as necessidades e desejos mais imediatos que nos faz definir algo como bom ou mal? E não definimos isso senão com relação à nós mesmos? Há entre nós aqueles que se auto-definiriam maldosos, ruins, enquanto "aceitam" seus opostos como bons, dada uma suposta autoridade da nobreza? A não ser que o bom seja adimitir-se ruim, uma tal humildade que, por tabela, mesmo considerando-se ruim, seríamos no final das contas, bons. Tudo aquilo que nos é comum, que faríamos, que nos pertence ou que nos beneficia, é o que valoramos bom, enquanto aquilo que é de fora, o diferente, seja oposto ou não, é o ruim. A moral em comum, os chamados códigos de ética, são pura ilusão, uma valoração pessoal que sempre irá se diferenciar daqueles que não convivem nesses hábitos. Dentro do próprio grupo que contitui a ética, pode haver tanta discordância entre termos específicos, quanto entre códigos de ética distintos de grupos adversários.

Quanta bondade deve haver em declarar-nos bons? A necessidade de justificar nossos atos e o medo de confrontação dos mesmos, nos leva a criar essa ilusória moral, que verifica e atesta nossos atos como o bom em sí, e desaprova tudo o que não faríamos, o que não nos é próprio, carimbando-lhes uma marca que, esperamos, seja de desgraça e desgosto, onde será mal visto por todos de tal grupo, como o mal, o ruim, o bárbaro, o imoral.

O quão conveniente foi lhe criar, minha cara moral! Ainda era necessário torná-la divina, a palavra de Deus, para que reinasse em toda a sua extensão. Agora podemos dormir em paz, a tão sonhada paz de espírito! Será mesmo um bom estado para se viver? Ou para morrer?

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