sábado, 12 de abril de 2008

Da filosofia esotérica

A linguagem por vezes nos proporciona o belíssimo privilégio de falar muito sem dizer nada. Conceitos que são tão vazios e obscuros, que o conhecimento ordinário não é capaz de entendê-lo, é preciso ser um iniciado, não, é preciso ser o próprio Hermes Trimegistro para concebê-los, e ao menos ter alguma idéia do que estão falando. Essa linguagem não está presente apenas nos textos religiosos, metafísicos e místicos; Ela transborda na maioria dos escritos "filosóficos", uma verdadeira fábrica desses conceitos esotéricos."Pedro, por exemplo, é algo real; a verda deira idéia de Pedro, porém, é sua essência objetiva e, em si, alguma coisa real e totalmente diversa do próprio Pedro." - SpinozaAssim se expressava Spinoza no seu Tratado de correção do intelecto, dando a oportunidade de usá-lo como exemplo. A "idéia de que a idéia" é algo real, palpável, e diversa do objeto que ela representa, é algo que vem desde Platão, o filósofo esotérico por exelência, que supôs que as idéias unicamente eram reais, e o mundo percebido, os objetos e suas características, assumiam o posto de representação do verdadeiro. Em suma, esta vida é como uma pintura do mundo real, dando margem inclusive para a conteporaneidade interpretar esse "lugar" como um mundo espiritual. O computador só existe por que, antes de ser criado, já existia "a idéia do computador", que possibilitou a sua contrução, ou melhor, a representação da idéia do computador. No auge da sua ortodoxia esotérica, o filósofo chegou à condenar a pintura, pois esta, segundo ele, era na verdade "a pintura da pintura", como um plágio herético da descrição humana do mundo real, o das idéias. Isso não é muito diferente do conceito de Spinoza, que chama essa idéia verdadeira de "essência objetiva". Ora, se a idéia é algo que construímos de acordo com a percepção que obtivemos, ela nunca será objetiva, sempre subjetiva, relativa ao sujeito que percebeu, e formulou essa idéia. Mas se não há um objeto, uma idéia verdadeira, uma essência que possa ser percebida, não há como descobrir a verdade, e tudo desemboca no relativismo radical, todos estão certos, e tudo vira um caos, dizem eles, e de fato, é necessário que "sintamos" essa realidade. Precisamos saber se estamos certos, precisamos saber a verdade, e essa obsessão nos leva à cunhar termos ocos, atribuindo essências inteligíveis aos objetos, e criando mundos supra-sensíveis, onde é possível perceber a verdade em toda a sua extensão. Mas esse caminho não é fácil. É necessário um específico método para se chegar a certeza, ou melhor, é necessário uma "correção do intelecto", para que possamos entender e conceber esses termos, e nos orgulhar de possuírmos a verdade, não apenas uma limitada visão sobre o que quer que seja. Eis que estamos iniciados e prontos para a investigação do mundo empírico, agora dotados da imparcial percepção de um intelecto corrigido, predisposto à localizar a verdade onde quer que ela esteja."Daí se vê que a certeza nada mais é que a própria essência objetiva, a saber, o modo como sentimos a essência formal é a própria certeza..." - Spinoza (TCI)E eis que podemos nos orgulhar de termos certeza, pois essa não passa de um mero reflexo de que conhecemos a verdade, que "sentimos a essência" diretamente do que quisemos conhecer. Não precisamos mais da dúvida, da investigação, dos sentidos, pois, para se ter essa certeza,"não precisamos de nenhum outro sinal senão ter uma idéia verdadeira", é tão simples, como não pensei nisso antes?Mas o título de mestre da filosofia esotérica, eu credito ao grandioso Kant. Não há ninguém que consiga com tamanha eficiência demonstrar a existência do inexistente. Seu conceito "a priori", é outra materialização dessas idéias verdadeiras, é algo que já está contido no intelecto antes mesmo de qualquer percepção, que inclusive adicionamos à essa percepção, e que denominamos (ou deveríamos denominar) conhecimento puro. Devemos aprender à separar esse conhecimento puro, à distinguir o que foi percebido empiricamente, do que foi adicionado pela conhecimento puro, nossa "faculdade transcendental". E novamente damos de cara com aquela iniciação, que sem os anos de aperfeiçoamento e o uso do método correto, não poderemos distinguí-los, e estaremos condenados à pensar que todo o nosso conhecimento é devido às impressões sensíveis. Oh vida, oh agonia!"...(Esse) aditamento,(...) não distinguimos senão mediante uma longa prática que nos habilite a separar estes dois elementos."Ao contrário de Platão e Spinoza, Kant aqui não atribui o conhecimento puro, ou os conceito à priori, à um mundo das idéias, o verdadeiro, mas sim à uma "faculdade transcendental", que em sí mesma conteria esses conceitos antes mesmo de qualquer dado empírico. Assim, segundo ele, tomando como exemplo evidente desta faculdade a matemática, 1+1=2 já seria préexistente antes mesmo de querermos representar o que vimos. Não criamos 1+1=2 para representar os objetos e lidar com as quantidades, nascemos com esta faculdade de "matematicar" e inteligir tudo o que nos afeta pelos sentidos.Ninguém, pelo menos por enquanto, sintetizou tanto a natureza dessa iniciação filosófica quanto o famoso racionalista Descartes. O método cartesiano ganhou grande admiração levantando uma verdadeira frota de seguidores. O que ficou implícito nos outros métodos, foi explicitamente descrito no método cartesiano. Era preciso livrar-se de toda a experiência sensível. Os conceitos errados só podem provir de percepções enganosas, devemos pois, jogá-los fora, e, sem estar na posse desses dados duvidosos, construir as verdades absolutas, indiscutíveis, a essência objetiva Spinoziana, o conhecimento puro Kantiano, o mundo das idéias de Platão. Mas será mesmo possível o simples descarte de toda a experiência sensível que obtivemos? Ou será que nos julgamos livres de sua influência quando estamos eternamente predispostos à moldar nossas percepções à essa experiência? Querermos nascer de novo não nos faz nascer de novo. O desejo de esquecer um desgosto ou uma vitória não é suficiente para destruir essa memória. Talvez até quanto mais pensamos em esquecer determinada experiência, mais estaremos nos lembrando dela.Se há um método mais eficaz de conhecer a realidade, esse é descrevendo os dados obtidos. Não podemos descrever uma realidade se esta não for justamente o que é: uma descrição. No momento em que atribuímos uma natureza extra-sensorial à qualquer objeto exposto à percepção, seja "a priori", uma alma, uma idéia verdadeira, uma essência objetiva, já estamos nos aproximando do erro, pois não há em que se apoiar para sustentar quaisquer conceitos. Não estaremos descrevendo a realidade, mas fabricando-a, uma que, por sinal, é bastante diversa daquela que é percebida. Não, acho que não é uma boa idéia. Toda essa iniciação, toda essa fabricação de conceitos ocos e esotéricos me faz pensar que estou descrevendo qualquer "país das maravilhas", e, tal como Alice, só volto nesse mundo se for tomando aquele cházinho esperto! Aqui nesse mundo aparente, onde volto à ser o profano de sempre, é melhor somente falar dessas percepções, ou corro o risco de ficar mais louco do que já sou.

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