domingo, 23 de março de 2008

Ontologia da Loucura

Receio ficar um pouco mais louco a cada dia. E confesso, tenho orgulho disso. Há muito que sinto náuseas só de ouvir palavras como normal, comum. O maior ultraje para nós, diferentes, é sermos forçados a mudar, em favor de um comportamento padrão, de uma moral comum.
Falo isso, para introduzir uma linha de pensamento idealizada por Ronald David Laing, que rejeita conceitos tradicionais como da "doença mental", da normalidade, inaugurando um movimento chamado hoje de antipsiquiatria. Com efeito, muitas objeções já haviam surgido, e ainda surgem, sobre a impossibilidade de detectação da doença psiquiátrica, devido ao fato de não se tratar de um desequilíbrio químico passível de observação médica, mas de simples "avaliação" psicológica, que, como tal, está sujeita à "opinião" do psiquiatra. Daí se concluí que, não havendo uma detecção da doença por instrumentos médicos, o que se dá então é a rotulação do paciente, tendo em vista o comportamento e as informações passadas por este. Sendo assim, essa rotulação, e o consequente "tratamento médico", estão condicionados à parcialidade das informações obtidas naquele momento da consulta, bem como à formação e opinião do médico sobre tais comportamentos.
Laing, que chama o paciente psiquiátrico de "divergente social", diz que este é julgado e punido por apresentar certo incômodo ao pensamento padrão, normal, comum à sociedade, à maioria. A tese de Lang, que tem por base a definição da esquizofrenia, diz que alucinações e delírios podem ser nada mais do que uma defesa do cérebro contra situações difíceis, sofridas, da vida do paciente.
Isso nos remete à história da lobotomia. Em meados de 1890, o cientista alemão Friederich Golz, realizou experimentos de ablação cirúrgica do neocortex em cães, e relatou que os animais ficavam mais dóceis do que o "normal" (olha ele aí denovo), quando removidos os lobos temporais.
Essa experiência foi o suficiente para inspirar o doutor Gottlieb Burkhardt, na época, diretor de um asilo mental na Suíça, à realizar o procedimento em seis de seus pacientes, diagnosticados como esquizofrênicos, e que ficavam agitados devido à alucinações, segundo Golz. Dois deles morreram, alguns ficaram mais calmos, não se podendo definir se por consequência da operação, e Golz começou à ser duramente criticado por seus colegas e sucessores.

"...na década dos 30s, vários laboratórios experimentais nos Estados Unidos fizeram várias descobertas impressionantes sobre o papel dos lobos frontais e temporais do cérebro no controle do comportamento emocional e agressividade. Na Universidade de Yale, em 1935, um cientista chamado Carlyle Jacobsen fez observações sobre o comportamento de chimpanzés após a destruição do córtex frontal e pré-frontal por meio de uma lobotomia. Um dos animais, que ficava muito agressivo em certas situações, ficou calmo e fácil de manejar depois da operação...". Quem relata o ocorrido é R. Sabbatini, que continua:
"Walter Freeman, compareceu ao mesmo congresso de Londres que Egas Moniz, e posteriormente leu seus resultados em uma publicação. Fascinado coma idéia e os resultados obtidos, ele se uniu a um neurocirurgião, James Watts, para aplicar a nova técnica a pacientes americanos. Eles operaram pela primeira vez em setembro de 1936. Após alguns casos, eles estavam convencidos que a leucotomia funcionava, e começaram a fazer uma intensa propaganda da mesma."

Bem, o fato é que Freeman era mesmo convincente. Tinha agora à seu favor a elite da psiquiatria convencida à duras penas, e a imprensa.
Mas Freeman estava insatisfeito com a grande duração e a complexidade da operação, que são os empecilhos básicos para o lucro fácil. Tendo em vista essa dificuldade, elaborou, em 1945 um novo procedimento, que consistia em abrir um acesso ao lobo prefrontal através da órbita do olho. O leucótomo, instrumento necessário para a cirurgia que necessitava trepanação, foi substituído por um quebra-gelo, literalmente, diminuindo um pouco mais a dificuldade da operação.
Punha-se o quebra-gelo na parte superior da órbita, e um martelo faria, docemente, o trabalho de atravessar pele, tecidos e ossos, em direção à normalidade.
"O procedimento era tão impressionante, no entanto, que mesmos neurocirurgiões veteranos não agüentavam observar, e alguns chegavam a desmaiar ao testemunhar a verdadeira "linha de produção" montada por Freeman em alguns hospitais."

Se em uma "época normal", a sociedade já produz muitos indivíduos diferentes, "loucos", imaginem por volta de 1940, em plena segunda guerra mundial, onde uma avalanche de "esquizofrênicos" era internada todos os dias. Em poucos anos, mais de 20.000 pacientes foram operados só nos Estado Unidos. No Brasil, a técnica foi utilizada durante vinte anos, tendo alcançado seu ápice depois dos resultados obtidos pela curiosa pesquisa ministrada pelos psiquiatras Edgard Pinto Cesar, Darcy M. Uchôa, Eduardo Guedes e outros. Curiosa, pois todos os pacientes operados eram mulheres, fato não justificado pelo autor da pesquisa.
"De acordo com Barreto (op. cit., p. 353), até aquele momento ele teria conseguido 24% de "remissões completas ou de melhoras muito nítidas". "Apenas" um paciente teria falecido...".
Nesse artigo, do doutorando em psicologia André Luis Masiero, entendemos o porquê da continuidade dos experimentos mesmo com a sua duvidosa eficácia:
"Nas estatísticas dificilmente eram contabilizados os casos "piorados", isto é, que ficaram com seqüelas irreversíveis, mesmo porque ninguém se interessava por métodos de avaliação psicológica mais eficientes que a simples e rápida observação diária."

Além disso, sempre se acrescentava, à cada experimento novo, um ou dois detalhes técnicos com o intuito de aumentar a efetividade, e assim podia-se ministrando mais e mais lobotomias com a justificativa de um "método ainda incompleto". Para a história detalhada, continuar lendo o artigo, ou a página de R. Sabbatini.

Enfim, o fato é que as divergências entre os métodos psiquiátricos e o movimento chamado antipsiquiatria perduram até hoje.
Na crítica de Foucault, a psiquiatria assume um outro papel, onde o psiquiatra nos diz:

"Sabemos sobre a sua doença e sua singularidade coisas suficientes, das quais você nem sequer desconfia, para reconhecer que se trata de uma doença; mas desta doença conhecemos o bastante para saber que você não pode exercer sobre ela e em relação a ela nenhum direito. Sua loucura, nossa ciência permite que a chamemos doença e daí em diante, nós médicos estamos qualificados para intervir e diagnosticar uma loucura que lhe impede de ser um doente como os outros: você será
então um doente mental".

Esse seria o jogo de poder, a autoridade que a psiquiatria exerce sobre o paciente, que, em microfísica do poder, Foucault descreve detalhadamente, e, de cara, define a antipsiquiatria fechando esse post com chave de ouro:

"Este jogo de uma relação de poder que dá origem a um conhecimento
que, por sua vez, funda os direitos deste poder, caracteriza a psiquiatria "clássica". E este círculo que a anti−psiquiatria pretende desfazer, dando ao indivíduo a tarefa e o direito de realizar sua loucura levando−a até o fim numa experiência em que os outros podem contribuir, porém jamais em nome de um poder que lhes seria conferido por sua razão ou normalidade; mas sim destacando as condutas, os sofrimentos, os desejos de estatuto médico que lhes tinham sido conferidos, libertando−os de um diagnóstico e de uma sintomatologia que não tinham apenas valor classificatório, mas de decisão e de decreto, invalidando enfim a grande retranscrição da loucura em doença mental."


Um viva à todos os loucos, e um brinde ao desprezo pela "normalização", pelo senso comum e pela psiquiatria.



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